Larguei, pois costuma-se largar cedo em semana de recuperação do que foi academicamente perdido pelos "perdidos academicamente", e estou aliviado por estar positivamente azul e atualizado em todas as disciplinas – acabarei tendo sangue azul.
Depois de escrever esse poste, estudarei um pouco de história e terminarei de compor algumas músicas.
Como prometi no poste do vigésimo quarto dia de setembro,
estarei a postar as crônicas do penúltimo livro de Clarice Lispector lido este ano, "Para Não Esquecer". Esse livro de Clarice reúne crônicas, fragmentos e relatos escritos por ela.
Muitos escritos publicados ali são relatos e experiências do relacionamento com seus filhos ou podem ser a designação do mistério, do desconhecido e a exploração do cotidiano, que, nas mãos de Clarice, torna-se uma tragédia cósmica. Nesse livro, encontrei muita coisa já lida em "A Descoberta do Mundo", livro integrante da inspiração desse blogue e digerido três vezes por mim.
Selecionei 22 textos entre os mais de 110 contidos no livro. Ao decorrer dos postes, publicá-los-ei com pequenas resenhas ou sem pequenas resenhas.
No dia em que fui inserido na cultura de nossa civilização, postei Futuro de Uma Delicadeza. Hoje, eu postarei Por Não Estarem Distrídos, que mostra bem a situação (expressada aqui) que deixava-me com medo de ter "ciência dita" do meu amor por alguém; e postarei Os Espelhos.
Leiam os textos já citados e escritos por Clarice Lispector:
Os Espelhos
" O que é um espelho? Não existe a palavra espelho - só espelhos, pois um único é uma infinidade de espelhos. - Em algum lugar do mundo deve haver uma mina de espelhos? Não são precisos muitos para se ter a mina faiscante e sonambólica: bastam dois, e um reflete o reflexo do que o outro refletiu, num tremor que se transmite em mensagem intensa e insistente "ad infinitum", liquidez em que se pode mergulhar a mão fascinada e retirá-la escorrendo de reflexos, os reflexos dessa dura água. - O que é um espelho? Como a bola de cristal dos videntes, ele me arrasta para o vazio que no vidente é o seu campo de meditação, e em mim o campo de silêncios e silêncios. - Esse vazio cristalizado que tem dentro de si espaço para se ir para sempre em frente sem parar: pois espelho é o espaço mais fundo que existe. - E é coisa mágica: quem tem um pedaço quebrado já poderia ir com ele meditar no deserto. De onde também voltaria vazio, iluminado e translúcido, e com o mesmo silêncio vibrante de um espelho. - A sua forma não importa: nenhuma forma consegue circunscrevê-lo e alterá-lo, não existe espelho quadrangular ou circular: um pedaço mínimo é sempre o espelho todo: tira-se a sua moldura e ele cresce assim como água se derrama. - O que é um espelho? É o único material inventado que é natural. Quem olha um espelho conseguindo ao mesmo tempo isenção de si mesmo, quem consegue vê-lo sem se ver, quem entende que a sua profundidade é ele ser vazio, quem caminha para dentro de seu espaço transparente sem deixar nele o vestígio da própria imagem - então percebeu o seu mistério. Para isso há-de se surpreendê-lo sozinho, quando pendurado num quarto vazio, sem esquecer que a mais tênue agulha diante dele poderia transformá-lo em simples imagem de uma agulha.Devo ter precisado de minha própria delicadeza para não atravessá-lo com a própria imagem, pois espelho que eu me vejo sou eu, mas espelho vazio é que é espelho vivo. Só uma pessoa muito delicada pode entrar num quarto vazio onde há um espelho vazio, e com tal leveza, com tal ausência de si mesma, que a imagem não marca. Como prêmio, essa pessoa delicada terá então penetrado num dos segredos invioláveis das coisas: Vi o espelho propriamente dito.E descobri os enormes espaços gelados que ele tem em si, apenas interrompidos por um ou outro alto bloco de gelo. Em outro instante, este muito raro - e é preciso ficar de espreita dias e noites, em jejum de si mesmo, para poder captar esse instante - nesse instante consegui surpreender a sucessão de escuridões que há dentro dele. Depois, apenas com preto e branco, recapturei sua luminosidade arco-irisada e trêmula. Com o mesmo preto e branco recapturei também, num arrepio de frio, uma de suas verdades mais difíceis o seu gélido silêncio sem cor. É preciso entender a violenta ausência de cor de um espelho para poder recriá-lo, assim como se recriasse a violenta ausência de gosto da água."
Por Não Estarem Distraído
Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles.
Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque – a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras – e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração.
Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto.
No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram.
Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios.
Tudo, tudo por não estarem mais distraídos."
Este último texto lembra-me tantos momentos belos. Lembra-me o dia no qual voltamos, eu e meu amado amigo, duma palestra acerca de Música e Religiosidade.
Foi um dos dias mais belos que já tive em sua companhia. Não pelos roteiros turísticos de Recife que recebem nossos pés diariamente, mas por vê-lo atencioso, ao meu lado, natural, por vê-lo almoçar comigo, por partilharmos vivências, por vê-lo sonolento a oscitar . Disse-me ele que "...passei a noite acordado. Eu fui ao cinema com minha irmã e voltamos tarde". Deu para perceber que eu também passei a noite acordado e como quis deixar claro o quão semelhantes somos, não deu? A diferença é que passei a noite acordado por não conseguir esquecer que passaria todo o dia com alguém que fazia-me deixar intrigado, com alguém que fez-me ganhar a
perna inútil que G. H. perdeu num momento de apreciação da êxtase d'outrem.
Estava a ocorrer, no Marco Zero, um festival internacional de teatro de objetos. Fomos. Mas fomos com a esperança de ver Hermeto Pascoal de pertinho e num show com poucas pessoas após o encerramento das representações. Ele não poderia ficar, pois estaria tarde demais para ele voltar ao seu bairro. Eu ofereci táxi com minha companhia até a porta de sua casa. Mas ele disse "... minha mãe pediu para sair do centro às 21h e o show começa às 21h30min. É muito importante para mim, mas não sou como você que não tem horário para chegar." Como reposta, disse rindo e ironicamente que sou um ser emancipado.
Só para ficarmos juntos mais tempo, tivemos a ideia de duma ida à Livraria Cultura do Shopping Paço Alfândega.
Senti seu hálito doce. E desejei seu hálito no meu quarto, em qualquer lugar no mundo. Não desejei em mim, a esbarrar nos meus lábios. Desejei-o nos ares do meu quarto e desejei estar perto dele para sempre.
Lemos algumas revistas. Ele leu artigos científicos sobre física quântica e eu li sobre civilizações pré-colombianas em revistas de história e arqueologia.
Conversamos acerca da razão de existirmos; então vimos que já estava na hora de partir. Saímos à parada do autocarro, expressando em dizeres nossas elucubrações acerca da existência. Quando o vi sem mais a dizer, eu prometi que em cinco minutos escreveria algo sobre as razões da existência com duas das minhas três palavras preferidas, que são "cerne" e "sobrepujar". Já estávamos longe da Livraria quando eu pedi para que ele segurasse meu braço direito enquanto eu escrevia com a mão do braço esquerdo, pois haveria a possibilidade de beijos duros entre eu e o chão. Escrevi. Noutro dia, peguntei do destino daquele papel com minha caligrafia rabiscada. Ele disse que queimaria, mas decidiu primeiro pôr no computador e depois guardar a folha. Só agora, enquanto escrevo, é que observo que deveria perguntar o motivo do fogo com o papel.
As pessoas passavam entre nós dois, agitadas, para ver Hermeto Pascoal. Então, tocamos e nos tocamos esmagados. Falávamos acerca de cousas quaisquer; ríamos. Decidimos apreciar a água negra do Rio Capibaribe. Gosto da "música da água".
Acho que está na hora de parar. É demais para mim. Estava a suprimir muitos pormenores para mim mesmo, não por serem proibidos de publicações na Rede, mas por sentir demais enquanto escrevo. Suprimia detalhes pois ainda ( "ainda" é minha terceira palavra favorita, revelo) temo afogar-me em meus mergulhos no mar existencial onde eu encontrei meu Amado Amigo. Ele disse-me que um dia poderia me ensinar a nadar. Ele ama natação. Sou um tanto sedentário, mas sempre quis ter disposição para praticar esportes. Minha mãe diz que, na verdade, eu sempre quis alguém para praticar esportes comigo. De qualquer forma, nesses tempos de lições de natação, se eles existirem, já estarei nadando muito bem no meu mar existencial.
Agora só posso dizer que o abracei na despedida; depois fui ao show de Hermeto Pascoal.
Acho que, pelo o que eu escrevi por cá, vós pensais que o que escrevi nos parágrafos anteriores não possuem tanto a ver com "Por Não Estarem Distraídos" de Clarice Lispector. Só os detalhes suprimidos por mim, como no susto da súbita descoberta, de modo consciente, mostrariam as razões e justificativas das minhas lembranças associativas.
Seu eu continuar lembrando assim, ninguém vai aguentar ler nada do que escrevo.
Estou calmo, como recomendou o Cesinha. Se não estivesse assim, já teria gritado ao mundo o meu amor. Por estar calmo e por deixar ir-me navegando até a foz do Rio Capibaribe para que o nosso amor seja um rio fluindo e fluindo é que não estou a gritar o meu amor. Que correnteza!
Hei-de postar algumas fotos dos lugares citados cá:
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Vista da Ponte Maurício de Nassau (primeiro plano) a partir da perspectiva do Velho Recife sobre a Livraria Cultura. Por Sério Menezes. |
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Interior do Shopping Paço Alfandêga, Recife - PE. Por Sério Menezes. |
Descarreguei um leitor de Feeds em meu computador. Agora: como tenho blogues para ler! Já gostava da "Blogsville", e gosto ainda mais agora que estou menos "tímido" por cá.